Coronavírus e governo digital: o que isso impacta na sua vida?

Você já ouviu falar nos termos “Governo Digital” ou “e-Gov”? Estes conceitos fazem referência a digitalização do setor público. O que muitos não sabem, é como um governo mais digital pode nos ajudar a combater pandemias como a do Coronavírus. Neste artigo, explico brevemente como estes assuntos se relacionam, e porque você deve se importar com este tema.

O Ministério da Saúde divulgou, até as 18h deste domingo (03/05), 101.147 casos confirmados do novo Coronavírus (Sars-Cov-2) no Brasil, com 7.025 mortes pela Covid-19. A faixa de letalidade está em 6,9%[1]. O avanço da pandemia do Coronavírus vem acompanhado de impactos negativos na economia mundial. Quando o comércio, o turismo e grandes cadeias de suprimentos globais são levados em consideração, as influências econômicas do surto serão vastas em todo o mundo. Um diagnóstico concluído pelos economistas da Bloomberg aprontou que o crescimento do PIB da China no primeiro trimestre pode cair para 4,5%. De acordo com uma modelagem estimada pelos mesmos especialistas, para analisar as perdas esperadas para diferentes países em todo o mundo, o PIB global provavelmente cairá cerca de 0,42% no primeiro trimestre do ano devido ao surto[2].

Em suma, isso significa que nossa renda e oferta de empregos cairá. Projeções apontam que os grupos mais afetados pela pandemia são também os mais vulneráveis. De acordo com um estudo conduzido por pesquisadores da UFMG, no Brasil, as famílias com renda entre 0 e 2 salários mínimos podem ser as mais afetadas pela crise econômica. Os mais pobres podem ter sua renda 20% mais impactada do que a média das famílias brasileiras[3]. Com o desemprego elevado, a arrecadação do governo também vai diminuir, dificultando ainda mais possíveis investimentos para melhorias nas áreas de educação, segurança e, é claro, saúde. São poucas as certezas desde que a covid-19 entrou em cena, trazendo à tona questionamentos que vão além dos imensos desafios na área da saúde pública. O Governo Digital pode ser um dos caminhos para responder alguma dessas perguntas.

 

O que é o Governo Digital?

Governo digital – ou e-gov – são conceitos considerados essenciais para melhorar o relacionamento entre o governo e o público[4]. O governo digital explora como as administrações podem usar as tecnologias da informação e comunicação (TICs) para adotar bons princípios e alcançar objetivos políticos. Alguns consideram o governo digital como uma ferramenta poderosa para melhorar a eficiência interna do governo, a qualidade da prestação de serviços, a participação e o engajamento da população[5]. A digitalização de processos análogos da administração pública pode trazer benefícios sustentáveis e de longo prazo para todos nós. Em termos operacionais, isso se traduz na redução de encargos administrativos, como por exemplo, a simplificação de etapas que precisam ser concluídas para que um indivíduo consiga abrir sua empresa[6]. Além de uma redução no tempo e nos custos dos procedimentos administrativos, também é esperado que a digitalização melhore a qualidade dos serviços públicos. Uma delas é maior transparência, o que significa que indivíduos e empresas podem entender mais facilmente as decisões que o governo adota. Além da maior qualidade nos serviços, a digitalização pode trazer uma grande economia para um país como um todo. Em 2016, o governo federal da Bélgica conseguiu economizar mais de €27.000.000 para sua população com o desenvolvimento de diversos serviços públicos digitais[7].

 

E afinal, como o governo digital pode nos ajudar durante o contexto do covid-19?

O tema de governo digital não poderia ser mais relevante durante a crise que estamos enfrentando, principalmente na área da saúde pública. Um estudo mostrou que muitos gargalos na área da saúde podem ser amenizados com investimentos digitais que promovem a sustentabilidade a longo prazo[8]. Novas tecnologias e telemedicina (e-Health) são úteis para a vigilância de doenças infecciosas[9]. Portanto, tecnologias devem ser aplicadas em situações como a da pandemia de Covid-19 para apoiar uma intervenção massiva na área da saúde, descongestionando hospitais e fornecendo grandes volumes de dados em tempo hábil. A digitalização também é consistente com a localização geográfica em tempo real (através do rastreamento de smartphones ou outros dispositivos) de indivíduos potencialmente contagiosos, suavizando a rede viral letal.

Um dos principais benefícios de digitalizar a saúde é a interoperabilidade de dados. Podemos entender interoperabilidade como a capacidade de diferentes sistemas de tecnologia da informação e aplicativos de software para se comunicar, trocar dados e usar as informações que foram trocadas[10]. A interoperabilidade traz uma visão integral da saúde, já que possibilita reunir, compartilhar e utilizar as diferentes informações de um mesmo paciente. Essa perspectiva mais ampla permite que a assistência à saúde seja feita com mais segurança e eficiência, além de agilizar o tempo dos processos. O gerenciamento de doenças também requer o uso de linguagens mistas ao discutir etiologia, diagnóstico, tratamento e acompanhamento. Todas as fases requerem gerenciamento de dados e, no caso ideal, esses dados são interdisciplinares e uniformes e claros para todos os profissionais de saúde envolvidos. Essa interoperabilidade de dados semânticos é um dos elementos técnicos que dão suporte à medicina digital emergente, à saúde e à medicina P4 (preditiva, preventiva, personalizada e participativa). Em um mundo em que as doenças infecciosas são tendências a se tornar ameaças difíceis de tratar devido à resistência antimicrobiana, a interoperabilidade semântica de dados é essencial para combater de forma mais eficiente estas ameaças[11].

Certamente, a medicina no século 21 é cada vez mais dependente da tecnologia e não existem mais razões pelas quais os governos não devem investir em soluções digitais na saúde. Diferentemente de muitas outras áreas, o custo da tecnologia médica não está diminuindo e a falta de soluções em TI na saúde contribui ainda mais para maiores gastos com saúde. Muitos profissionais médicos equiparam o progresso da medicina ao uso crescente de tecnologia sofisticada, que geralmente é cara e está além do alcance do cidadão comum[4]. Análises apontam que as despesas globais com saúde devem aumentar a uma taxa anual de 5,4% entre 2017 e 2022, de US$ 7.724 trilhões para US$ 10.059 trilhões[12]. As tecnologias referentes a itens tangíveis, como equipamentos de diagnóstico ou infraestrutura física, tem uma relação custo-benefício que é muito difícil de ser mensurada, já os investimentos digitais, têm um retorno de investimento mais curto, geralmente são mais baratos e mostram benefícios mais sólidos em relação aos seus custos. A saúde digital também é um dos principais impulsionadores da inovação, crescimento e competitividade. É relatado que a tecnologia pode reduzir os custos com saúde em 7 a 11%[13].

 

 

Caso Italiano: Digitalização e COVID-19

 

A aplicação, ainda que não muito ativa, da digitalização na saúde da Itália mostra quais são os sinais do progresso alcançados, mas também o potencial de avanços nessa área. Segundo o Osservatorio Innovazione Digitale em Sanità[14], as despesas com tecnologias de informação para o sistema de saúde na Itália cresceram, em 2018, em 7% (2% em 2017). Os investimentos foram concentrados em prontuários eletrônicos e em sistemas departamentais. 85% dos médicos generalistas usam o e-mail para se comunicar com os pacientes (64% dos médicos gerais e 57% dos médicos especializados usam o WhatsApp). Consultas são marcadas digitalmente por somente 11% dos pacientes e 7% pagam online. Um total de 41% dos cidadãos usa dispositivos como relógios inteligentes para monitorar sua saúde. O diagnóstico de imagem é digitalizado em 88% dos casos (86% das análises laboratoriais). Os aplicativos digitais são amplamente utilizados em radiologia (84%), mas menos em aplicativos de ultrassom (40%), ECG / EEG (33%) ou aplicativos de patologia (7%). O uso de aplicativos, blogs ou pesquisas por informações on-line está crescendo continuamente. 

Os dados mostram que a compra de soluções digitais na Itália é um gargalo devido à falta de conhecimento de seu potencial e obstáculos legais[8]. No caso da Itália, uma aplicação mais abrangente e inteligente de digitalização no sistema de saúde pode melhorar substancialmente a qualidade de vida de cerca de 24 milhões de pessoas (40% da população). Atualmente, no que tange digitalização no sistema de saúde, a Itália investe apenas €22 euros por cidadão (em comparação com €70 por cidadão na Dinamarca; €60 por cidadão no Reino Unido e €40 por cidadão na França). A digitalização da saúde na Itália, assim como em qualquer outro país, facilita a troca de informações, o compartilhamento de dados em tempo real, reservas instantâneas, o acesso a registros de pacientes digitalmente e libera mais leitos hospitalares[15]. 

No Brasil, alguns avanços foram feitos quanto a digitalização da saúde. A câmara dos deputados aprovou a prática da telemedicina em hospitais públicos e privados. Para entrar em vigor, o projeto ainda precisa passar pelo senado e ser sancionado pelo presidente. Em síntese, existem várias definições que focam na ideia de que a Telemedicina consiste no uso da tecnologia para possibilitar cuidados à saúde nas situações em que a distância é um fator crítico[16]. A telemedicina é uma importante ferramenta para levar apoio geral e especializado, independentemente do local onde o paciente estiver. Usando a telemedicina para identificar e analisar o quadro clínico do paciente, realizar seu monitoramento, bem como emitir resultados de exames e analisar a evolução clínica a distância, promoverá ações de tratamento de forma mais ativa, atingindo, com eficiência, importantes ações de saúde[17].

Além da telemedicina, outros avanços já foram feitos para digitalizar nossa administração pública e potencializar nosso sistema público de saúde, o SUS. A Lei Nº 13.787[18], de 27 de dezembro de 2018 promulgada pelo Governo Federal, dispõe sobre a digitalização e a utilização de sistemas informatizados para a guarda, o armazenamento e o manuseio de prontuário de pacientes. Visto para muitos como um marco histórico e grande avanço para nosso país, a digitalização de prontuários em países desenvolvidos é algo extremamente básico[19] e é apenas a primeira variável a ser digitalizada dentro de uma enorme quantidade de possibilidades que o Brasil deve aproveitar para melhorar o serviços de saúde pública para a população. Em 2014, o gasto público com saúde do Brasil, em participação no PIB, foi de 3,8%, ficando abaixo dos realizados por Uruguai (6,1%), Panamá (5,9%), Colômbia (5,4%), Nicarágua (5,1%), Paraguai (4,5%), El Salvador (4,5%) e Chile (3,9%)[20]. 

Como explicado acima, conforme previsões, os gastos com saúde pública só devem aumentar com o passar dos anos. A digitalização é uma das formas de conseguirmos diminuir e conter esses gastos e trazer maior eficiência para os serviços prestados à população. A resposta não está somente em investir mais, e sim, em fazer investimentos com maior qualidade e em áreas mais estratégicas. Com as diretrizes corretas, nossas Unidades Básicas de Saúdes, Postos de Saúde e Secretárias de Saúde estariam mais preparadas para calamidades como a que nos encontramos. A digitalização do governo pode salvar vidas. O Brasil deve seguir iniciativas de países como a Estônia que estão dando o exemplo de como a digitalização na administração pública pode nos ajudar a combater a crise do Coronavírus.  Nossos políticos têm o dever de modificar as leis e facilitar avanços na digitalização. Somente assim, veremos grandes progressos como redução dos prazos de fabricação de medicamentos, maior número de leitos hospitalares livres, utilização da tecnologia de Blockchain para evitar erros humanos e falsificação de medicamentos[21] e uso de inteligência artificial (AI) para obter informações e auxiliar nas práticas clínicas[22].

 

[1] Ministério da Saúde, “Painel Coronavírus,” 2020. [Online]. Available: https://covid.saude.gov.br/.
[2] F. K. Ayittey, M. K. Ayittey, N. B. Chiwero, J. S. Kamasah, and C. Dzuvor, “Economic impacts of Wuhan 2019‐nCoV on China and the world,” J. Med. Virol., vol. 92, no. 5, pp. 473–475, May 2020.
[3] E. P. Domingues, D. Freire, and A. Souza Magalhães, “Efeitos econômmicos negativos da crise do Corona Vírus tendem a afetar mais a renda dos mais pobres,” 2020.
[4] M. A. Shareef, Y. K. Dwivedi, V. Kumar, and U. Kumar, “Reformation of public service to meet citizens’ needs as customers: Evaluating SMS as an alternative service delivery channel,” Comput. Human Behav., vol. 61, pp. 255–270, Aug. 2016.
[5] N. P. Rana, Y. K. Dwivedi, M. D. Williams, and V. Weerakkody, “Adoption of online public grievance redressal system in India: Toward developing a unified view,” Comput. Human Behav., vol. 59, pp. 265–282, Jun. 2016.
[6] T. Kalvet, M. Toots, A. F. van Veenstra, and R. Krimmer, “Cross-border e-Government Services in Europe,” in Proceedings of the 11th International Conference on Theory and Practice of Electronic Governance – ICEGOV ’18, 2018, pp. 69–72.
[7] BOSA, “The Digital Barometer of the Federal Government.”
[8] R. Moro Visconti and D. Morea, “Healthcare Digitalization and Pay-For-Performance Incentives in Smart Hospital Project Financing,” Int. J. Environ. Res. Public Health, vol. 17, no. 7, p. 2318, Mar. 2020.
[9] G. L. Gilbert, C. Degeling, and J. Johnson, “Communicable Disease Surveillance Ethics in the Age of Big Data and New Technology,” Asian Bioeth. Rev., vol. 11, no. 2, pp. 173–187, Jun. 2019.
[10] J. B. Perlin, “Health Information Technology Interoperability and Use for Better Care and Evidence,” JAMA, vol. 316, no. 16, p. 1667, Oct. 2016.
[11] X. Gansel, M. Mary, and A. van Belkum, “Semantic data interoperability, digital medicine, and e-health in infectious disease management: a review,” Eur. J. Clin. Microbiol. Infect. Dis., vol. 38, no. 6, pp. 1023–1034, Jun. 2019.
[12] S. H. Nghiem and L. B. Connelly, “Convergence and determinants of health expenditures in OECD countries,” Health Econ. Rev., vol. 7, no. 1, p. 29, Dec. 2017.
[13] J. S. Ancker et al., “Associations between healthcare quality and use of electronic health record functions in ambulatory care,” J. Am. Med. Informatics Assoc., vol. 22, no. 4, pp. 864–871, Jul. 2015.
[14] C. Sgarbossa, “Osservatorio Innovazione Digitale in Sanità,” 2019. [Online]. Available: https://www.osservatori.net/it_it/osservatori/comunicati-stampa/spesa-sanita-digitale-italia. [Accessed: 04-Apr-2020].
[15] E. Kontio et al., “Predicting patient acuity from electronic patient records,” J. Biomed. Inform., vol. 51, pp. 35–40, Oct. 2014.
[16] C. L. Wen, “Telemedicina e Telessaúde – Um panorama no Brasil,” Informática Pública, vol. 10, no. 2, pp. 07–15, 2008.
[17] “Telemedicina é um importante apoio para epidemias como o Coronavírus,” 2020. [Online]. Available: https://brasiltelemedicina.com.br/artigo/telemedicina-coronavirus/. [Accessed: 05-Apr-2020].
[18] “Lei 13.787/2018 (Lei Ordinária) 12/27/2018,” 2018.
[19] S. Caceres, “Electronic health records: beyond the digitization of medical files,” Clinics, vol. 68, no. 8, pp. 1077–1078, Aug. 2013.
[20] F. S. Vieira and R. P. D. S. E Benevides, “O Direito à Saúde no Brasil em Tempos de Crise Econômica, Ajuste Fiscal e Reforma Implícita do Estado,” Rev. Estud. e Pesqui. sobre as Américas, vol. 10, no. 3, p. 28, Dec. 2016.
[21] T. McGhin, K.-K. R. Choo, C. Z. Liu, and D. He, “Blockchain in healthcare applications: Research challenges and opportunities,” J. Netw. Comput. Appl., vol. 135, pp. 62–75, Jun. 2019.[22] F. Jiang et al., “Artificial intelligence in healthcare: past, present and future,” Stroke Vasc. Neurol., vol. 2, no. 4, pp. 230–243, Dec. 2017.

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