Nossa geração experimenta a complexa realidade da relação de vida e convívio em um período de pandemia. Não é de estranhar que presenciamos a propagação desenfreada e, de certo modo, pouquíssima controlada de uma doença, visto que, em média, pandemias ocorrem no mundo a cada dois ou três séculos. Porém, pela primeira vez, a pandemia ocorre em um ambiente extremamente globalizado e conectado, o que traz diferenças abissais na forma de controle e vigilância.
Como humanidade, estamos com uma ciência mais qualificada – como nunca tivemos em outras épocas – tanto nas searas de saúde pública, quanto nas perpendiculares que se atravessam e precisam obrigatoriamente serem orientadoras, ao fim de respostas positivas ao relacionamento com os Direitos Humanos. Também pela primeira vez na história uma pandemia “encontra” um ambiente em que boa parte da humanidade vive em regimes democráticos e que, em diferentes níveis, respeita respeita princípios nobres ao Estado de Direito, como a Liberdade, a Igualdade e o Direito de Privacidade.
O direito à privacidade e a vida em sociedade durante outras pandemias
Se formos estudar outros períodos de pandemias para observar o tratamento com o Direito de Privacidade, não existiram grandes cuidados com o seu valor, tão apreciado socialmente. Na Praga de Justiniano , ocorrida em 530 e pela qual se acredita que quase um terço da população europeia tenha morrido, havia a divulgação pública, com marcações nas casas infectadas, das pessoas que estavam com a doença, o que as fazia sofrer discriminações, pois as transformava em indivíduos desprezados socialmente. O mesmo ocorreu no período da crise da Varíola no Japão, doença que matou um quarto da população; e, também, na pandemia popularmente conhecida como peste negra [2], na qual – preconceituosamente- judeus eram expostos publicamente como propagadores da doença e sofriam enormemente com ações praticadas por comunidade cristãs, como torturas e assassinatos.
Se de um lado há toda uma expansão de cuidados e respeitos aos direito de privacidade, em que ordenamentos jurídicos têm sólidas legislações de proteção, nunca uma pandemia encontrou, como já dito, um ambiente global tão hiperconectado. Em nenhuma outra pandemia, profissionais de saúde e cientistas puderam discutir e auxiliar pesquisas à distância, em tão rápida velocidade, por meio de redes de internet, e nem familiares puderam diminuir suas saudades, com uso de aplicativos. Também, pela primeira vez, Governos e Entidades Internacionais podem mensurar, com uso de aplicações em big data e robustas análises preditivas, os avanços de uma doença, atuando na vigilância dos cidadãos, por meio de rastreamentos.
COVID-19 e a privacidade de dados: os casos da Coreia do Sul e da China
Caso emblemático neste sentido é o da Coreia do Sul. No momento em que um indivíduo que está no território do país é diagnosticado com COVID-19, é realizado todo um monitoramento individual do seu deslocamento e visto o seu histórico de cartão de crédito, sendo possível determinar uma linha do tempo dos locais que passou e com quem se encontrou (contact tracing).
Há, no continente asiático, outros modelos que são até mais invasivos da privacidade, como o utilizado em algumas regiões da China, em que há total monitoramento do fluxo dos cidadãos, com geolocalização individualizada e não anonimizada e identificações por meios de câmeras de vigilância, com medição de temperatura, ou com pulseiras de códigos QR e tecnologia Bluetooth de monitoramento de residentes de áreas em quarentena.
COVID-19 e a privacidade de dados: o caso brasileiro
No caso brasileiro foi até o momento, implantando em São Paulo e outras capitais, e anunciado pelo Governo Federal, antes da suspensão pela Presidência da República [3], um modelo em que os dados de localização são agregados e anonimizados. A aplicação gera mapas de calor de regiões com maior número de pessoas, e mede o percentual das pessoas que não estão se deslocando.
Segundo a Lei 9.472 (Lei das Telecomunicações), em vigência no Brasil, dados agregados e anonimizados, podem ser divulgados a terceiros, caso não violem a sua intimidade e não permitam a identificação direta ou indiretamente [4]. Também à luz da Lei 13.709 (Lei Geral de Proteção de Dados), com vigência adiada por Medida Provisória para 03 de maio de 2021, há a aceitação do uso dos dados anonimizados, visto que não são dados pessoais em que não se tem a divulgação do indivíduo. Ademais, a LGPD traz como exceção de que dados podem ser utilizados pela Administração Pública, caso haja necessidade para a execução de políticas públicas, para a tutela da saúde e para a proteção da vida. Neste caso, contudo, há de se ter a atenção de que os dados devam ser utilizados no combate à emergência, de forma segura e sem compartilhamento com terceiros, sendo imediatamente apagados depois de superado a emergência — em um objetivo artigo, Ronaldo Lemos afirma que a lei brasileira permite que se use dados coletados pelo celular para combate da pandemia.
A análise quanto às possibilidades de uso da tecnologia no monitoramento no Brasil e no mundo, colocam em evidência a importância da discussão da força dos princípios para garantir que não seja ultrapassado as necessidades dos seus usos, com respeito a qualidade do dado e ao seu ciclo de vida, que necessariamente tem de ser célere. Seja pela ponderação ou pelo sopesamento (a partir da escola adotada), seleções responsáveis deverão ser feitas pelos administradores públicos acerca das escolhas de legalidade e constitucionalidade da medida, visto que futuramente, poderão ser provocados a se defenderem judicialmente.
Independente da aplicação e interpretação da lei já vigente ou da que for entrar em vigência, há óbvia necessidade de se orientar e analisar a questão, emblemática e particularíssima, a partir dos direitos que estruturam o Estado Democrático de Direito e a sua relação republicana. Ao fim de não se cometer injustiças há de se ter neste momento uma visão responsiva com literacia dos dados e eminente cuidado aos riscos de potencialidade no vazamento desses. O Estado tem de garantir pelos meios técnicos hábeis não exista, irregularidades e ilegalidades, visto que estas geram enormes riscos sociais.
Responsabilidades do Governo ao lidar com dados pessoais dos cidadãos
Neste momento, é importante e defendido por diversos estudiosos e entidades brasileiras como a CGI.br, a Lapin [5], a Data Privacy BR, o ITS Rio e a Open Knowledge Brasil que a administração pública, direta ou indiretamente, além de ter transparência nas atitudes de forma ativa (o que é sempre sua obrigatoriedade), reconheça a necessidade da prestação qualificada e criteriosa de contas à sociedade.
A Accountability neste momento moldará muito o perfil do uso, ético ou não, legal ou ilegal. Neste ponto, é uma grande infelicidade que até o momento não exista uma Autoridade Nacional de Proteção de Dados, visto que esta poderia indicar práticas e perfis de comportamento e aplicação.
Concluímos que, existindo meios técnicos adequados, é extremamente favorável o uso de dados de geolocalização de forma anonimizada para o combate e o controle da disseminação do COVID-19 no Brasil e que não há um rompimento do uso ao princípio da finalidade no compartilhamento de dados, frente a análise constitucional e das leis infraconstitucionais vigentes.
Quanto às técnicas sem a anonimização para controle e combate da pandemia, permanecemos temerários a sua aplicação e acreditamos que poderá ser realizado somente se for demonstrado tecnicamente como será feito a agregação dos dados (que tem de ter em base confiável), o seu descarte, sua única utilização para aplicações emergenciais (como assim tem de ser aos dados anonimizados) e se previamente for discriminado toda as técnicas de aplicação realizadas, em linguagem acessível e se possível, em código aberto.
Estes cuidados, por suas peculiaridades e complexidades, precisam obrigatoriamente ter uma leitura multissetorial [6], multidisciplinar e transdisciplinar, pois será somente deste modo que teremos uma aplicação ética e responsável, que não coloca em risco maior, a população. É necessário termos unidade, transparência e ponderação, em busca de segurança e efetividade.
Referências:
[2] Colecionamos dois interessantes estudos sobre o período que servem de síntese para este breve resumo sobre a realidade histórica das pandemias. O primeiro do Historiador Colin McEvedy, intitulado The Bubonic Plague e o segundo chamado The Black Death do Historiador William L. Langer. Ambos estudos, um de 1988 e outro de 1964 podem ser acessados no sítio da Scientific American.
https://www.scientificamerican.com/article/the-black-death/ https://www.scientificamerican.com/article/the-bubonic-plague/
[3] A suspensão foi realizada pela Presidência em 13 de abril de 2020. https://canaltech.com.br/saude/governo-suspende-uso-geolocalizacao-celular-covid19-163296/ A posição é acompanhada pelo atual Ministro da Justiça Sérgio Moro que em entrevista afirmou que a medida é uma intromissão a privacidade. http://cbn.globoradio.globo.com/media/audio/298069/moro-diz-que-geolocalizacao-para-identificar-aglom.htm
[4] Já há e curso parceria entre a Telefónica e o Governo de São Paulo de se utilizar dados para rastreio de foco da COVID-19. As informações podem ser lidas em: https://computerworld.com.br/2020/04/02/parceria-entre-vivo-e-governo-de-sp-usara-dados-para-rastrear-focos-de-covid-19/
[5] A LAPIN (Laboratório de Políticas Públicas e Internet) divulgou nota técnica sobre Uso de Dados de Geolocalização no Combate ao COVID-19, com considerações acerca da privacidade e tutela da saúde durante a pandemia. O estudo pode ser lido na sua íntegra em: https://9977a902-e455-46d9-8a7b-0ac71f155f93.filesusr.com/ugd/77388c_a0288a05727842f4ae45936dd9ee86a4.pdf
[6] Em relatório intitulado Privacidade e Pandemia: Recomendações para o Uso Legítimo de Dados no Combate a COVID-19, membros da Data Privacy BR de forma multissetorial trazem estudos com princípios e recomendações sobre boas práticas O estudo em sua integridade pode ser lido em: https://www.dataprivacybr.org/wp-content/uploads/2020/04/dataprivacybrasilresearch_relatorioprivacidadeepandemia.pdf
Bibliografia:
BIONI, Bruno; ZANATTA, Rafael; MONTEIRO, Renato; RIELLI, Mariana. Privacidade e pandemia: recomendações para o uso legítimo de dados no combate à COVID-19. Conciliando o combate à COVID-19 com o uso legítimo de dados pessoais e o respeito aos direitos fundamentais. São Paulo: Data Privacy Brasil, 2020.
FENNER, Frank, HENDERSON, Donald A, Arita, Isao, JEZEK, Zdenek Smallpox and its eradication. History of International Public Health. Geneva: World Health Organization. 1988
LEMOS, Ronaldo. A proteção de Dados e a Covid-19. São Paulo: Folha de São Paulo. 2020
MAYRINK, Otávio; FARRANHA, Ana Cláudia; SOUTO, Gabriel Araújo; Nota Técnica. Uso de Dados de Geolocalização no Combate ao COVID-19. Considerações sobre a privacidade e tutela da Saúde durante a Pandemia. Brasília. LAPIN UNB, 2020.
MCEVEDY, Colin. The Bubonic Plague. New York. Scientific American. 1988.
MORDECHAI, Lee; EISENBERG, Merle; NEWFIELD, Timothy P.; IZDEBSKI, Adam; KAY, Janet E.; POINAR, Hendrik “The Justinianic Plague: An inconsequential pandemic? Washington. PNAS. 2019