Fake news, desinformação & PL 2630/2020: mais aculturamento e menos Abracadabra.


Quem não se lembra dos abracadabras, pirlimpimpins e hocus pocus? Os contos infantis comumente abarcam histórias de criaturas encantadas, que têm soluções instantâneas para difíceis problemas, com uma palavra ou um “passe de mágica”.

Pois é. Mas mesmo aqueles que se encantavam com histórias infantis e entravam “na onda” do uso de fantasias, ou artefatos que “emprestavam” poderes mágicos, encaram a dura realidade da vida adulta, quando resta recorrer à filosofia e a arte para melhor caminhar. 

O Direito geralmente chega atrasado na catarse dos fenômenos sociais. Na verdade, sempre foi assim: primeiro o caos, depois a regulação. A questão é que às vezes os problemas demandam soluções mais ligeiras, mas isso nem sempre é possível…

Este texto visa provocar a reflexão sobre o fenômeno da dupla dinâmica e nada heroica fake news & desinformação no Brasil, a supressão de direitos fundamentais na tentativa de solucionar o problema e o papel da cultura para que o Brasil saia do topo do ranking de desinformados na rede.

Desinformação & Fake news: uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa.

Antes de entrar no mérito da vivência brasileira sobre os temas em referência, é crucial traçar uma diferenciação conceitual entre  fake news e desinformação. O relatório produzido pelo Instituto de Tecnologia e Sociedade – ITS Rio e a Digital Future Society no intuito de combater a desinformação por meio do empoderamento cidadão cumpre bem esta missão.

Segundo o relatório, Fake News (notícias falsas) é um termo muito simplista e que passou a ser frequentemente usado para para explicar o fenômeno de manipulação da informação que ocorreu nas eleições federais dos Estados Unidos de 2016 e depois disso. Em verdade, o material elucida que o termo “notícia” diz respeito a uma informação verificável, logo o termo fake news é contraditório em sua essência. 

Desinformação, por sua vez, pode ser entendida como “um fenômeno sistêmico que envolve múltiplos atores e toma diferentes formas. Vários atores participam da desinformação e, em essência, perseguem objetivos diferentes e frequentemente conflitantes”.

A desinformação pode envolver, por exemplo, uma notícia de cunho verdadeiro, mas deslocada de contexto e manipulada com elementos e conexões diversas, por vezes falsas, com a contribuição de imagens, textos, vídeos etc.

A diferenciação dos dois termos é essencial para entendimento da complexidade do problema.

Panorama brasileiro


Em 2018, um estudo realizado pelo Ipsos Public Affair sobre fake news, filtros bolha, pós-verdade e verdade, que abrangeu mais de 19.000 pessoas de 27 países diferentes, apontou que o brasileiro é o povo que mais acredita em fake news — 62% dos entrevistados admitiram já terem acreditado erroneamente em uma notícia falsa até descobrirem a verdade.

No recorte do período da pandemia, por exemplo, o G1 iniciou o projeto #fato ou #fake, em que jornalistas investigam a veracidade das informações que circulam nas redes a fim de expor o que é ou não condizente com a realidade.

O projeto chegou, na primeira semana de agosto, ao marco de 300 investigações, que envolveram #fakenews sobre máscaras importadas da China estarem sendo distribuídas contaminadas com o novo coronavírus à mentirosa tabela que mostra Brasil com a maior taxa de recuperados da COVID-19 no mundo.

Outro destaque relevante é sobre o caso recente envolvendo o influenciador digital Felipe Neto, um dos maiores do Brasil, que conta com 12,5 milhões de seguidores na sua página do Instagram e 38,9 milhões no YouTube. 

O Estadão, reportou a circulação de uma montagem com um tuíte falso no Facebook, que atribuiu a Felipe Neto a frase “criança é que nem doce, eu como escondido”. A imagem foi publicada em diversas postagens que, juntas, somavam mais de 9 mil interações no Facebook até 27/07/2020 — mesmo sendo mentira. Os danos à imagem do jovem parecem incalculáveis.

PL 2630/2020, pressa legislativa, risco à liberdade de expressão e ineficácia.

O PL 2630/2020, que objetiva ser a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet, e que ganhou o apelido de Lei das Fake News, teve o texto aprovado pelo Senado em junho passado sem passar por grandes debates e, atualmente, aguarda votação pela Câmara dos Deputados (que tem se empenhado em abrir o debate sobre o tema).

Diante do controverso texto do PL, a velocidade de sua aprovação no Senado e inexistência de debate público, instituições como a Ordem dos Advogados do Brasil, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a Relatoria Especial de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, a Coalizão Direitos na Rede e a Associação Data Privacy de Pesquisa, e profissionais especialistas em Direito Digital, como a Dra. Viviane Maldonado, pioneira na matéria no Brasil, têm produzido artigos e notas técnicas no intuito de conscientizar a sociedade em geral e as lideranças brasileiras acerca das inconsistências do projeto de lei.

Não é o objetivo deste artigo esgotar todos os pontos truncados do texto do PL, nem tampouco abordar as melindrosas questões relacionadas à desinformação somadas ao fato de que 2020 é ano eleitoral no Brasil, pelo que foram selecionados dois fatores os quais bem transparecem a questão.

O instrumento que se apresenta como a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet traria à sociedade brasileira a implementação de um ambiente de vigilância online, que consequentemente golpearia o direito à liberdade de expressão.

Apesar do sufocamento desse direito fundamental constitucionalmente assegurado, não haveria, no fim das contas, resolução para o problema da desinformação. Ronaldo Lemos, advogado, diretor do ITS Rio e colunista da Folha destacou, recentemente: “Uma forma eficaz de combater campanhas organizadas para espalhar notícias falsas é seguir o dinheiro. Especialmente porque no mundo de hoje a desinformação tornou-se uma indústria muito bem financiada. Há uma miríade de empresas, designers, programadores, gestores e financiadores envolvidos na disseminação de notícias falsas. Essa estrutura é cara. Compreendê-la ajuda a lidar com o problema.”
Esta, definitivamente, não é a finalidade do projeto de lei em destaque.

Equação supressiva:  (+) Vigilância (-) Liberdade de Expressão

Em uma matéria publicada na Folha de São Paulo no 04 de agosto, Diego Canabarro, advogado e gerente de políticas públicas para a América Latina e o Caribe na Internet Society, e Paulo Rená, integrante da Coalizão Direitos na Rede, explanaram 10 razões para que a Câmara rejeite o artigo 10 do PL 2630.

O artigo, se mantido e aprovado, implicará que os serviços de mensagem mantenham, por três meses, os registros de mensagens encaminhadas em massa, ou seja, mensagens que sejam enviadas por mais de cinco usuários e recebidas por mais de mil usuários num período de 15 dias.

Tais registros deverão indicar dados de quem encaminhou a mensagem, bem como data e horário, além da quantidade de usuários que a receberam. São os chamados metadados, ou seja, dados sobre os dados. Segundo os especialistas, “Não se trata de combate a fake news, tampouco de responsabilidade, mas de um ‘PL da rastreabilidade das comunicações pessoais’ ou ‘PL da vigilância em massa em apps de mensagem’.”

Uma das razões elencadas para rejeição do artigo 10, na visão dos especialistas, é a de que “coletar, armazenar e tratar metadados é tão perigoso quanto acessar o conteúdo das comunicações privadas.

A nota técnica elaborada pelo Data Privacy Brasil em 24 de julho de 2020 vai na mesma direção quando critica a proposta de rastreabilidade de encaminhamento de mensagens proposta pelo PL 2630.

O documento intitulado “Rastreabilidade, Metadados & Direitos Fundamentais” traz duras críticas à lógica de hipervigilância identificada no projeto de lei, uma vez que a retenção de metadados vai de encontro ao princípio da presunção da inocência (todos são inocentes até que se prove o contrário), constitucionalmente assegurado.

Pela lógica da Lei seriam retidos dados e metadados de qualquer pessoa que se enquadrasse nas hipóteses, independentemente da ilicitude da conduta, criando, então, um cenário de hipervigilância. Todos são culpados (e monitorados), até que se prove o contrário.

E então entramos no mérito da agressão à liberdade de expressão, que é constitucionalmente garantida aos brasileiros desde a Constituição Federal de 1988, além de ser assegurada por Tratados Internacionais dos quais o Brasil é signatário, a exemplo do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e da Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

A liberdade de expressão é classificada como direito fundamental na nossa Constituição Federal, que diz em seu artigo 5º, IX: “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença.”

Ora, se um ambiente de vigilância e retenção de dados e metadados é instalado nas aplicações de mensagens, é óbvio que a liberdade de expressão é lesionada, uma vez que os usuários, por medo, praticariam autocensura, ceifando o próprio direito à liberdade de expressão. Além disso, jornalistas, defensores e defensoras de direitos humanos, estariam mais vulneráveis do que já são em matéria de monitoramento de comunicação.

Pensamento crítico, cultura de checagem e verificação.

O relatório do ITS e da Digital Future Society, citado no início deste artigo aponta que o ciclo da desinformação tem três fases: produção, disseminação e consumo.

Consumo.

Talvez as pessoas se deixem dominar pela passionalidade e ansiedade geradas com a leitura das notícias, dando vazão a isso nas redes sociais por meio do compartilhamento, sem a prévia checagem da veracidade e contexto da informação. Lembram do dado da Ipsos Public affair sobre a crença do brasileiro em fake news? Estamos no topo do ranking.

Em um debate realizado entre o ministro Luís Roberto Barroso, integrante do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), e o youtuber e empresário Felipe Neto, a defesa foi pela educação digital e a conscientização como uma das formas de combate à desinformação.

Nas palavras acertadas do youtuber: “Não houve, em nenhum momento no Brasil, educação digital. Não ensinamos às pessoas como usar a internet. Uma pessoa tem dificuldade de entender o que é uma notícia do jornal e o que é uma mensagem do WhatsApp. A mensagem do WhatsApp chega formatada como uma notícia real. A pessoa não entende que não é”, afirmou.

Sim, é evidente que a melhor medida para combater fake news e desinformação é a educação digital, que tem em seu escopo a criação de uma cultura de checagem e verificação na qual, antes o compartilhamento, há o exercício de um olhar crítico sobre o conteúdo que está sendo consumido. Se, no Brasil, assim fosse, talvez não haveria a necessidade de lidar com um projeto de lei tão problemático. 

Mais uma vez, então, ela: a cultura.

Autora: Jennifer Vidal Ferreira, advogada, colunista do Social Good Brasil e redatora do @rioantigo.

Exerça a sua cidadania e acompanhe o andamento PL 🙂

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