O que democracia, autoritarismo e sistemas de governo têm a ver com o uso de dados? Tudo. A ideia deste texto é nos lembrar do conceito de democracia e autoritarismo, relembrando que somente com a observação e atenção dos próprios cidadãos quanto aos desdobramentos político-sociais, esses sistemas são, de fato, mantidos ou não.
Sobre dados: a sua utilização é empoderadora e o uso desse poder é definido por quem o tem nas mãos. O principal ponto é: está no governo o poder daqueles que podem realizar a coleta, mineração e manipulação de dados. Então, quando se fala em dados pessoais e privacidade, se fala de governo, democracia e autoritarismo também… Além disso, legislações são sujeitas a votação e aprovação até a sua entrada em vigor, tal qual a Lei Geral de Proteção de Dados.
Adicione a esse contexto uma pandemia, como esta, do coronavírus, que estamos vivendo em 2020… Como fica o uso desses dados, agora urgentes? E a nossa privacidade nesse contexto?
Democracia é um ideal?
Ah, a Democracia… Uma reflexão rápida.
É o símbolo da autodeterminação política, onde a tomada de decisão do Estado é estruturada de forma a atender às demandas do povo, rechaçando a concentração do poder em uma única pessoa. São muitos os perigos, para a coletividade, viabilizados pela personalidade egóica, vaidosa, do indivíduo exclusivamente empoderado.
A clássica referência ao regime democrático tem origem na Grécia Antiga, onde aqueles classificados como cidadãos se reuniam nas Ágoras para deliberações e votações das regras que permeariam as relações sociais, no formato que se definiu como democracia direta.
Da Grécia Antiga para a França Contemporânea, período mediado pela fase absolutista, de sacrifício de direitos sociais em prol da concentração de poder pela Igreja e Monarquia na Europa, a devolução do poder ao povo durante a Revolução Francesa foi marcada pela Declaração dos Direitos dos Homens e do Cidadão, para que não mais houvesse ignorância, esquecimento, ou desprezo dos direitos do homem.
O modelo democrático foi impulsionado pela modernidade e na América Latina, particularmente, floriu principalmente após o fim de diversas ditaduras – o caso do Brasil.
Pois bem.
A democracia brasileira
Segundo o índice de democracia divulgado em janeiro de 2019 pela The Economist Intelligence Unit, o Brasil vive, atualmente, uma democracia imperfeita. No ranking, elaborado a partir de uma pesquisa cujos critérios foram: processo eleitoral e pluralismo, cultura política, participação política, liberdades civis e funcionamento do governo, e que analisou 167 países no mundo, o Brasil ficou em 52º lugar.
Em entrevista à Folha de São Paulo em março de 2020, já no período pandêmico, a cientista política alemã Anna Lührmann, vice-diretora do V-Dem (Instituto de Variações da Democracia), ligado à Universidade de Gotemburgo (Suécia), que lidera os estudos de um dos principais rankings democráticos do mundo, demonstrou preocupação com o caso brasileiro, declarando, ainda, que a crise do novo coronavírus tende a aumentar a onda autoritária mundialmente.
No tocante ao Brasil, Anna disse: “Os sinais do último ano em termos democráticos no Brasil têm sido bastante assustadores. A polarização crescendo, o discurso de ódio crescendo, ataques a jornalistas crescendo. Essa é a rota mais comum que os governos têm tomado em direção ao autoritarismo. É preocupante.”
A indicação de enfraquecimento daquilo que caracteriza a democracia por estudos específicos e comparativos de sistemas de governo por renomadas instituições de pesquisa parece acender um sinal de alerta sobre o tema.
O regime autoritário da Ditadura Comunista na China e o uso de dados coletados pelo controverso sistema de vigilância: desdobramentos em meio à pandemia
A China, por sua vez, experimenta desde 1949 o peso do autoritarismo batizado como Ditadura Comunista. Apenas um partido – o Partido Comunista – centraliza o controle do país em todas as esferas: governo, polícia e forças armadas.
Liberdade de imprensa? Não há. Nem de navegação na internet. O Governo filtra o que é disponibilizado para “livre” acesso pelos cidadãos e a chamada “Grande Muralha” digital bloqueia sites e plataformas como Facebook, Twitter, Youtube e Netflix.
No território chinês, que ensaia o que parece ser o umbral de liberdades individuais, teve início a disseminação do novo coronavírus. Hoje, 03/05/2020, o mundo contabiliza quase 3,5 milhões de pessoas infectadas e as mortes ultrapassam 240.000. O Brasil, até ontem, registrava 6.750 mortes e 96.559 casos. (Referência) É importante ressaltar que o Brasil não adotou a estratégia de testagem massiva da população, o que influencia diretamente na contabilização de casos de infecção e mortes pela doença.
A China da Ditadura Comunista conta com um sistema de vigilância massiva da população – o sistema de câmeras do país é equipado com cerca de 200 milhões de pontos de captação de imagens e a análise dessas imagens é feita através de machine learning.
Uma base gigantesca de dados formada muito antes do “corona”, e que tem como primeiro instrumento a identidade digital, reúne informações físicas, como cor do cabelo e altura, além de informações comportamentais, como lugares frequentados e índice de consumo de luz, gás, etc. Além disso, sistemas superdesenvolvidos de reconhecimento facial vigiam e registram os deslocamentos das pessoas.
We chat: o superapp da China
Em substituição ao Facebook, a população utiliza o WeChat, um “superapp” que concentra: social media, ou seja, interações com amigos em rede; acesso ao cartão de débito para realização de pagamentos; e informações pessoais: uma preciosa fonte de dados.
Os dados coletados pelo sistema de vigilância possibilitaram o mapeamento de rotas percorridas por pessoas que procuraram atendimento médico com sintomas do Covid 19.
Assim, foi possível rastrear, por exemplo, onde um infectado esteve ao longo dos 14 dias anteriores à aparição dos sintomas. A compra realizada através do WeChat no estabelecimento X viabilizou a coleta de dados para notificação, tanto do estabelecimento, quanto de todas as outras pessoas que por lá passaram, de forma que esses indivíduos foram orientados a se autoisolarem por 14 dias.
Em entrevista ao Centro Brasileiro de Relações Internacionais – CEBRI, Qu Yuhui, Ministro Conselheiro responsável por assuntos políticos na Embaixada da China em Brasília, explicou o funcionamento do “Código de saúde”, um aplicativo implementado por uma das províncias chinesas e que foi implementado em diversas outras dada a sua eficácia.
Ao entrar na província, a pessoa era obrigada a instalar o aplicativo, inserindo informações como locais de trânsito, meios de transporte utilizados, e temperatura corporal, etc. A partir do processamento desses dados, o aplicativo realizava uma classificação de risco por cores entre vermelho (alta chance de estar infectado), amarelo (suspeita de contaminação – autoisolamento obrigatório), e verde (quando há permissão para andar em lugares públicos). (Assista!)
A mobilização do sistema de vigilância massiva da China esteve no núcleo da redução de novos milhares de casos de contaminação para quase zero desde o início da pandemia.
Segundo um ranking elaborado pela John Hopkins University, do Estados Unidos, no dia 30/04, o Brasil ultrapassou a China no número de contágios e mortes pela Covid-19. No Brasil, não há a implementação, até onde sabemos, de sistemas de vigilância com o mesmo nível chinês e podemos interpretar que isso se dá, a princípio, pelo país asiático vivenciar uma experiência de autoritarismo. Aqui é democracia.
O despertar da consciência democrática pelo autoempoderamento cidadão: o desafio brasileiro
Se compararmos rapidamente a propagação do vírus e medidas de contenção em uma sociedade ditatorialmente conduzida e em democracias, podemos cair na armadilha – por desespero – de concluir que abrir mão da privacidade a qualquer custo é o melhor caminho para situações extremas como a que estamos vivendo.
Não é verdade.
Yuval Harari, o historiador israelense autor de “Sapiens”, elucida a questão em seu último artigo publicado no Financial Times, com sua recorrente genialidade. O autor explana a problemática surgida pela falsa dicotomia entre direito à saúde X direito à privacidade, informando a desnecessidade de instituição de regimes totalitários de vigilância, com a capacitação dos cidadãos.
Essa estratégia pode ser observada, segundo o historiador, em países como a Coreia do Sul, Taiwan e Cingapura, os quais usaram, sim, aplicativos com rastreamento. Porém, esses países realizaram testagem massiva da população, além de relatórios e fortificação da cooperação voluntária a partir da confiança das informações divulgadas pelas autoridades públicas.
“Uma população motivada e bem informada é geralmente muito mais poderosa e eficaz do que uma população ignorada e policiada.”, diz o autor.
No entanto, justamente a confiança acerca das “informações oficiais” e a legitimação de quem seriam as fontes confiáveis são os pontos que perpassam o notório enfraquecimento do processo democrático. No Brasil, inclusive.
Sobre esse ponto, Manuel Castells, em seu livro “Ruptura: a crise da democracia liberal”, que apresenta possíveis razões e consequências dos últimos acontecimentos da política mundial, afirma que: “A luta pelo poder nas sociedades democráticas atuais passa pela política midiática, pela política do escândalo e pela autonomia comunicativa dos cidadãos.”
O atual Presidente da República, Jair Bolsonaro, foi identificado pela The Economist como um dos quatro líderes mundiais a manter o discurso de negacionismo sobre a gravidade da pandemia mundial, na companhia Dos líderes da Bielorússia, Turcomenistão e Nicarágua.
O presidente teve, recentemente, postagens apagadas pelo Facebook, Instagram e Twitter, pois continham “desinformação que poderiam causar danos reais às pessoas”. Antes dos fatos, as empresas detentoras das mencionadas redes sociais anunciaram um pacto colaborativo para combater a disseminação de desinformação durante a pandemia, haja vista as más consequências que acarretariam para a saúde pública mundial.
Diante disso, é possível inferir que o Brasil – o país que mais acredita em fake news, segundo a pesquisa realizada pelo Instituto Ipsos em 2018 – teria dificuldade em adotar a estratégia indicada por Yuval como sendo a melhor para o combate à epidemia, a qual se consubstancia na atuação cooperativa da sociedade a partir da confiança nas informações e relatórios divulgados pelas autoridades, afastando a falsa dicotomia entre saúde e privacidade.
Em contrapartida, com a disseminação da doença e o afogamento da sociedade em incertezas provocadas pela crise sanitária, tenderíamos a clamar pelo estado de vigilância permanente, sem nos preocupar com os difusos interesses que envolvem esse tipo de implementação.
Onde estamos com a LGPD?
A ocorrência de vigilância em algum nível, baseada na captação de dados, é uma realidade das estratégias adotadas por países que contiveram mais eficazmente a disseminação do novo coronavírus. O Brasil, como dito anteriormente, se encontra numa crescente de casos de contaminação e número de mortes registradas, e o horizonte tem estado nebuloso quando nos questionamos: quando voltaremos ao “normal”?
Nas últimas semanas, algumas movimentações legislativas chamam atenção no tocante ao tema “proteção de dados” no Brasil. A Lei Geral de Proteção de Dados, por exemplo, teve a vigência tratada por um Projeto de Lei elaborado logo no início da pandemia, para que passasse a vigorar apenas em janeiro de 2021.
No dia 30/04/2020, houve edição de uma Medida Provisória que, entre outras questões,para a surpresa dos especialistas em proteção de dados, “jogou” a vigência da Lei para maio de 2021.
Privacidade, coronavírus e democracia
Numa democracia onde existe a vigilância, manipulação de informação e disseminação de fake News orientadas pela coleta de dados, mas de forma não declarada, diferente do que ocorre na Ditadura Comunista chinesa, a transferência constante de dados, o marketing direcionado, uso de bots, algoritmos, podem passar despercebidas.
Estratégias utilizadas por empresas como a Cambridge Analytica, que usou dados de nada menos que 87 milhões de usuários do Facebook para montar a inteligência de campanha que levou Trump à Presidência dos Estados Unidos, são absolutamente desconhecidas pela maioria das pessoas e mais se assemelham a um roteiro de episódio de Black Mirror.
O fato é: as cartas do uso de dados no Brasil não são postas à mesa e somente especialistas estão inteirados da lógica de funcionamento desse mercado, cuja ética é, ao menos, duvidosa. A informação da capa da “The Economist”, Data is the new oil (ou “dados são o novo petróleo”), não chega para todos os componentes de uma população onde três em cada dez são analfabetos funcionais.
Falta iniciativa dos próprios especialistas da área para, mais uma vez, democratizar o tema e facilitar seu entendimento, trazendo de fato a consciência do que se passa no mundo online. Somente a conscientização sobre a realidade de big data formado a partir da coleta de dados “voluntariamente” disponibilizados pelos titulares, irá viabilizar o empoderamento dos mesmos e, consequentemente, a melhoria dos processos de tomada decisão que influenciarão nas vidas de milhões de pessoas.
Enquanto não houver literacia digital navegaremos sem rumo juntamente com aqueles que, não por escolha, estão online e sofrem inputs imperceptíveis que moldam suas opiniões e decisões.
De quem é a responsabilidade? De todos nós, profissionais que estão minimamente íntimos com o tema e cientes da sua importância. Ou iremos aguardar a condução dessa alfabetização por quem está no poder?
Afinal, “Nem sempre as leis, regulamentos, instituições ou a própria tecnologia serão capazes de nos defender, mas é nossa obrigação a defesa uns dos outros, e a única forma de proteger algum de nós… é protegendo a todos” (Edward Snowden, Web Summit, Lisboa, 2019).
Colaborem.